Organização
Filippi Fernandes
Pedro Fernandes de Oliveira Neto
Cesar Kiraly

Capa
Victoria Topping

Projeto gráfico, editoração eletrônica, diagramação
Pedro Fernandes de Oliveira Neto

Páginas
252

Formato
edição eletrônica

Autores desta edição
José Luís Peixoto,Jonas Leite, Chary Gumeta (poeta mexicana traduzida por Pedro Fernandes), Rodrigo Novaes de Almeida, Lucas Rolim, Gabriel Abilio de Lima Oliveira, Carlos Augusto Pereira, Geovane Otavio Ursulino, Rosa Piccolo, Izabela Sanchez, Orlando Jorge Figueiredo, Diego Ortega dos Santos, Lucas Facó e Felipe Simas.

Autores convidados
Geraldo Blay Roizman, Ciro Inácio Marcondes, Saulo Pereira de Mello, Roberta Gnattali e Joel Pizzini

Descrição

“A POESIA QUE RESIDE NAS COISAS”


Há muito,
os objetos criaram
Um som macio de existência,
E a vida mudou-se sujocada
Para a face inerte, das coisas.
O mundo vestiu a capa grosseira
dos jatos cotidianos e chamou para a sombra,
tudo o que pudesse perturbar na luz,
a vista enfraquecida nas longas meditações.
Por isso, ninguém viu nada....

Mário Peixoto, trecho de “A poesia reside nas coisas”. Poemas de permeio com o mar


Podemos pensar que este trecho de poesia resumiria todo sentido do imenso reservatório poético e imagético de Mario Peixoto. O centro de tudo isso se encontraria na autoconsciência, desde a juventude, de um mundo originário ligado a um corpo-vibrátil sem órgãos e desterritorializado da infância. Este que incluiria um pensamento reflexo capaz de captar e expressar no intervalo de um instante sublime, uma infinita riqueza de energia na singularidade de texturas e cores das coisas ao redor em oposição àquele perceptivo funcional e inerte do cotidiano e das identidades subjacentes. Essa consciência de um corpo vibrátil se espalharia então por todos os meios expressivos que Mário utilizou, do cinema à literatura. Se há uma poesia da existência, do familiar ou do inefável do limite humano, ela se encontraria precisamente na dimensão tanto do absoluto da natureza em relação ao homem como na dimensão do corpo e das coisas imediatamente postas ao redor e que são necessariamente percebidas pelo olhar. Olhos e imaginação trabalhando sempre juntos segundo o próprio Mário, influenciado por um cinema mudo contaminado pelas vanguardas e pelo engajamento vinculado a um amplo contexto ideológico estetizante da arte moderna, que substituiu a tradição clássica e as convenções por uma nova ordem do mundo vinculada ao visível, na autonomia das descobertas da experimentação do olhar sobre as texturas na luz, como disse Louis Delluc, A poesia é portanto verdadeira e existe tão realmente quanto o olho. Mas Mário radicaliza essa experimentação estética em Limite no andamento fluido de sua “atenção” sobre as mãos iniciais, na textura do rosto da mulher do prólogo, do barco e do remo pictóricos na imagem, dos cabelos da mulher ou dos homens no cemitério, na textura sombreada do barco, nas guelras se entreabrindo do peixe na praia e nos movimentos livres da câmera no telhado, na estrada ou no bebedouro, nos movimentos da máquina de costura e no trem, desobstruindo-os do apenas simbólico ou de sua funcionalidade no encadeamento da narrativa fílmica para simplesmente acontecer poeticamente na imagem e no som entrelaçados, valendo-se principalmente de sua opacidade de coisa. Portanto será das coisas que nascerá uma poética do sublime, portanto moderna. E é dessa poética das coisas na imagem que nascerá uma narrativa sonora de imagens fluida e indeterminada. Essa poética se tornará um espelho fenomenológico dessa poesia que reside nas coisas na medida em que o próprio desencadear da narrativa geraria no fim de Limite uma poética do entrelaçamento na cena das mãos do homem morto formando, segundo o próprio Mário, uma contextura com o chão. O corpo como coisa entre as coisas. O entrelaçamento. A carne. O quiasma. Anos depois, já no início da grande literatura de O inútil de cada um, apareceria um pensamento amadurecido explicitando a poética de uma busca pelo sublime no ato reflexo do pensamento sobre si perceptivo e da suspensão do agora eternizado pela consciência do instante que recai sobre a percepção do tempo e das coisas ao redor espalhadas no chão e descritas no passeio na praia, extensão poética das pegadas do casal em Limite. O corpo será, então, o grande operador dessa poética. Poética de um pensamento espelhado que recai sobre si mesmo, sobre esse mesmo estar no mundo corpóreo e sua relação silenciosa com as coisas que tecem um universo de existência algo lisérgico nas texturas moventes ao som das trilhas de Debussy, Satie e Ravel e que de alguma forma prenunciariam algo como uma ponte longínqua do que viria a ser conhecida muito tempo depois como a nova dicção da valorização do corpo na contracultura, no comportamento hippie, expressa na literatura pop tropicalista em José Agrippino de Paula, nas artes plásticas, operada pelo ideologema fenomenológico do neoconcretismo, na performance e no cinema experimental dos anos 1970, principalmente no superoitismo de Céu sobre água, do mesmo Agrippino. Poderíamos então, quem sabe, pensar na constituição de um determinado veio estético brasileiro imbuído de um sensível corpóreo e que a partir desses regimes poéticos e de imagens diferenciados pudessem ser pensados a partir de um hipotético entrecruzamento no espaço e no tempo.

Geraldo Blay Roizman



Organização
Pedro Fernandes de Oliveira Neto
Cesar Kiraly

Capa
Billy and Hells

Projeto gráfico, editoração eletrônica, diagramação
Pedro Fernandes de Oliveira Neto

Páginas
250

Formato
edição eletrônica

Autores desta edição
Lau Siqueira, Jørge Pereira, Fernanda Fatureto, Douglas Siqueira, Laís Araruna de Aquino, Anna Barton, Salvador Scarpelli, Leandro Rodrigues, Lúcio Carvalho, Karin Krogh, Jeovane de Oliveira Cazer, Cristiane Grando, João Pedro S. Liossi, Luís Otávio Hott, Ricardo Abdala, Nivaldete Ferreira, Carlos Barata, Laís Ferreira Oliveira e Fernanda Pacheco.

Descrição
Sobrevida pela palavra

A vida são instantes. E os instantes são vãos. Só a palavra é sobrevida. Mesmo se esquecida, fatalidade da qual talvez o único ileso seja o tempo; silenciada, destino dado àqueles para quem a palavra é mero exercício pragmático ou quem é calado pelo poder.

A palavra é ainda nossa única eternidade. Foi, na impossibilidade de precisar o eterno, a cápsula que trouxe vivos quem nunca conhecemos. E revelará para o futuro quem fomos. A eternidade é um reverberar contínuo de palavras. Não à toa, a palavra foi tornada objeto de culto. Quem é deus, se não uma palavra? E a existência, se não o que se nomeia? A palavra é o princípio, o meio e o fim.

A compreensão da palavra como criadora do visível, finito, e do invisível, infinito, é a raiz da poesia. Há no poeta a contínua tarefa de refundação do mundo. Ora pela distensão da palavra em uso, ora pela renovação da língua pela palavra nova. No primeiro caso é, mesmo que recriação, criação, uma vez não ser o ato recriativo uma ressurreição. A ressurreição não é o nascimento do mesmo. Tudo só vive uma vez. Exceto a palavra, que se renasce e alcança os opostos noutras vidas.

Assim, quando acusam o poeta de sua poesia se refugiar no trivial é, por vezes, contra a possibilidade criativa – e o logo o ser da poesia – que se colocam. Porque não é a trivialidade aquilo que permanece no poema mas sua expansão. O que se expressa. E isso precisou que o poeta alcançasse outra compreensão sobre a efemeridade a fim de percebê-la como possibilidade poética. Ao mesmo tempo, esta não é uma percepção fortuita. Nem totalmente nova – coisa do acaso. Nem gratuita, levada em causa pelo império do trivial e do efêmero, expandido da aurora da modernidade ao contemporâneo. É a reafirmação do que sempre se percebeu enquanto força, pulso da natureza. Que o material da poesia é a existência. Se assim, a poesia está em toda parte. E o poeta é o demiurgo. 

Por exemplo, o ponto no qual se insere Ana Cristina Cesar, o dos poetas que lidam com o uso coloquial da linguagem e se apropriam na sua obra de palavras corriqueiras, dos seus usos pragmáticos, do seu cotidiano – afirmativa que, se se adéqua ao estatuto do efêmero aqui em destaque, se distancia o suficiente, no limite de ser chamado de contradição, se lembrarmos que esses poemas podem, agora distantes desses usos e do cotidiano da linguagem, constituir o sentido sempiterno esperado da poesia. Historicamente é inegável o distanciamento do presente tomado como feitura do poema. Mas, o caso percebido então, é que, tomado pelo poema, qualquer efemeridade é logo tornada distância. 

O trabalho de preocupação pela desvinculação do datado – daquilo que o próprio Carlos Drummond de Andrade, um dos nomes pertencentes daquele eixo central do modernismo e situado entre os revolucionários do gesto poético na literatura brasileira, isto é, base para o que tem sido trabalhado pelos poetas de depois – não é uma tarefa atribuída ao leitor mas ao poeta; convencionalmente, são raros os leitores presos à necessidade de vincular o conteúdo do poema a determinado contexto. E essa proximidade é só ilusão para o poeta. Para o leitor, pura miragem. Aos leitores mais acurados nunca lhe restará outra alternativa se não a de, no trato de deslindamento do poema, oferecer a mais diversa sorte de possibilidades de leitura a fim de demonstrar o trabalho de significação construído, direta ou indiretamente, pelo poeta. Isso significa dizer que, a depender da maneira como se verifica o contexto pela obra poética, retomá-lo não é atribuir-lhe uma força atrasada e sem valia para o leitor contemporâneo, tampouco atualizá-la, mas tratá-la como um enriquecimento no processo de leitura do poema. O poema é rio de linguagem e arrasta sedimentos do tempo. Em passagem, esses sedimentos são o mesmo-outros. Ler poesia vestida de efemeridades é encontrar a pele deixada pela palavra no passado e como se recria depois. Um mover-se sempre em distensão.

A efemeridade que une Ana C. aos poetas de seu tempo e depois dele assume-se como uma frente de significação diversa: se manifesta ora na estrutura e forma do poema, quando encontramos a força epifânica do verso curto, a estrofe breve ou poema-pílula e a linguagem quase sempre despida do trabalho de garimpo, a anotação do que lhe vem num instante de epifania; ora no tema, nas situações evocadas que se referem ao dia comum, do que vê e vivencia o eu-poeta; ou na maneira como o poema é apreciado pelo leitor. Isto é, não estamos ante qualquer força que lhe implique uma necessária reflexão porque o efêmero, o epifânico, é revelação e não inspiração. O poema é instante.

É por isso que o renascimento, por assim dizer, da sua obra encontra terreno muito fértil na atualidade. Porque, do tempo dela para o nosso, o efêmero é cada vez um modus vivendi; já não é a da atitude de reflexão contemplativa. Estamos definitivamente na era dos insight – naquilo que, se para o bem ou para mal ainda não sabemos, tem se assumido na poesia com grande força expressiva, ainda que o poema-trocadilho e o poema-piada, por exemplo, signos da aurora desse tempo, sejam uma alternativa cada vez mais previsível e logo um fenômeno cansado, que serviu a um tempo mas agora talvez devêssemos usar essa força para galgar outras expressões poéticas; de toda maneira, as novas gerações têm em poéticas como a de Ana o impulso para se reinventarem. Herdeiros na poesia são aqueles capazes de subverter o que seus antepassados disseram e fizeram. O trabalho de poetas como Ana C. foi sempre o de desconstruir descontraidamente a sisudez da poesia e de quem faz o verso.

Isso responde perfeitamente as acusações de que a poesia de poetas como Ana Cristina sobrevivem mais ao culto do poeta torturado, atormentado e suicida. A poesia dessa poeta encontra fôlego dentro e fora de seu tempo. É catapulta para o futuro. Prevalece a sobrevida da palavra que, por sua vez, é a sobrevida do poeta. Não o contrário como os detratores costumam pensar.