Organização
Pedro Fernandes de Oliveira Neto

Capa
Edward Hopper

Projeto gráfico, editoração eletrônica e diagramação
Pedro Fernandes de Oliveira Neto

Páginas
184

Formato
edição eletrônica

Autores desta edição
Paulo Vitor Grossi, Leonardo Terra Messias, Elizabeth dos Santos Columa, Emanuel R. Marques, Jorge Elias Neto, Anderson Petroni, Ângela Cláudia Rezende, Celso Gutfreind, Clarissa Macedo, Lucas dos Passos, Amélia Luz, Rolando Revagliatti, Ricardo Mendes Mattos, Vinícius Ferreira Barth, Rafael Kafka, Pedro Belo Clara, Renata Iacovino, André Giusti, Maria Sueli da Costa e Keutre Gláudia

Autores convidados
Claudicélio Rodrigues da Silva, Ítalo Meneghetti


Descrição

A POESIA NÃO É

A poesia encarna uma verdade. E o seu poder de composição da verdade só pôde ser descoberto muito recente quando seus feitores, os poetas, descobriram a ineficiência do ornamento e viram que a grandeza ou a dignidade do verdadeiro residem na simplicidade nua da palavra. Tal descoberta destituiu a poesia de seu lugar acima do homem. Agora, seu papel é terreno e a sua verdade é uma busca para o que é a palavra e sua capacidade, o que é o universo no qual se situa, qual sua composição e o que ele significa.

Tudo no poema tem existência própria. O universo do qual fala tem sua singularidade; a morfologia e a sintaxe têm respiração própria. Nada aí é desenhado pela lógica comum e nem pelo trato da gramática para com a linguagem. A voz do poema não se reduz a chamar as coisas pelo que elas são. Para compor sua verdade, a poesia se faz pela recusa: a recusa de si e da ordem geral do mundo.

É mérito dela o mérito da palavra, a exploração, a descoberta, a recriação; experimentar-se e experimentar o mundo. Desrealizar o alcançado pela retina; despersonalizar-se na extensa galeria das vozes; desler; descodificar; destruir. Tudo, elementos de um processo que mira a fuga da alienação e que anseia a não desumanização do homem.

A poesia deve ser sensação; a imagem, a música e o gesto são movimentos da consciência antes só explicados, mecanicamente, por uma razão lógica cunhada pelo homem. O poema não segue a razão lógica e confunde-se com o próprio gesto da consciência. Não existe para ser ritmo, rima, e contenta-se, por vezes, com a beleza da disritmia. Não existe preocupado no bom grado, mas na capacidade de inquietar e “empenhada” na relativização do instituído.

Tem uma existência própria, mas não se basta. Depende das determinações temporais e espaciais, embora não esteja subordinado a elas; depende do poeta, manipulador da palavra, ente que intermedia a relação do homem com o mundo. Reside no movimento de intermediação e tem, portanto, no poeta seu limite.

O poeta mantém com a palavra uma relação sísifica. No instante em que detém o domínio sobre a palavra é por ela dominado. E por isso, toda poesia é uma verdade, é uma sensação e, também, uma postura diante da existência. É equilíbrio entre a transitoriedade do ser e das coisas, numa dicção que quer ser impessoal, no sentido de que a palavra na poesia não tem sua nascente num eu empírico.

Se a poesia encarna uma verdade, o objetivo do poeta, mais que falar a outros homens e pelos outros homens, é o de dizer verdades. Não são verdades prontas e acabadas, polidas e centradas como quer a racionalidade que rege o mundo. Uma vez estarmos diante da exploração e da descoberta, as verdades ditas são de um tipo especial: são complicações, paradoxos, herdados de sua própria materialidade de composição – a palavra. Porque o poeta é o que procura libertar a palavra de sua aparência e usualidade. Logo, a palavra no poema é desvinculada do convencionalismo e o trato do poeta neste instante é o de potencializar o caráter polissêmico da verbosidade, expandindo os seus horizontes e as suas fronteiras.

É assim que se processa o trabalho de Salgado Maranhão.  O caráter de sua poesia não se reduz, evidentemente, à mera reatualização do signo linguístico. Quer o poeta com esse movimento proposital levar o leitor ao estranhamento do mundo. Se a palavra é ponte que interpela o sujeito e a relação com sua interioridade e exterioridade, o reavivamento dos sentidos quer ser uma proposição para uma nova visão das certezas, das experiências, das apropriações e da conduta que o homem assume perante a própria vida. A palavra corrompida revela a transitoriedade das coisas e dela própria no mesmo instante em que, se individualiza e passa a constituir o limite da própria existência do homem: a vida passa, a poesia a eterniza, porque individualizada a palavra se torna atemporal, inexorável.

A poesia de Salgado Maranhão é inquietação; tentativa de acesso à representação de uma episteme do mundo. É luta contra a limitação da palavra frente à ordem do universo – “e as palavras mordem/ a inocência. Aferram-se ao que é de pedra/ e perda”; é conflito entre o poeta e palavra, entre a palavra as coisas. E, em não raros casos, seu trabalho é do conflito entre o poeta e a sociedade com seus valores, consolidando um plano já decidido em Ezra Pound. A verdade é que sua poesia quer está no impasse, na ressemantização do dito, no silêncio, no hiato entre o signo e a representação. Nesse interregno, a palavra é para o poeta um desafio à razão, lhe serve de lugar para alinhar o ritmo do mundo no burburinho da criação, onde nada finda e tudo é princípio.


Pedro Fernandes de Oliveira Neto