Organização 
Pedro Fernandes de Oliveira Neto   

Projeto gráfico, editoração eletrônica e diagramação   
Pedro Fernandes de Oliveira Neto

Capa
Lúcio Fontana   

Páginas   
132 

Formato   
edição eletrônica   

Autores desta edição 
Hernany Tafuri, Fabio Aresi, Iza Quelhas, Vanice Ricardo, Pedro Belo Clara, Adriano Scandolara, Vernaide Wanderley, Guilherme Gontijo Flores, Carlos Gomes, Valdir Azambuja

Autores convidados 
Nelson Patriota, Henrique Marques Samyn, Gilfrancisco dos Santos


Descrição 

Quando já abandonamos a crença em um Deus, a poesia é a essência que ocupa seu
lugar como redenção da vida.
(Wallace Stevens)


Muito já se escreveu sobre o caráter valorativo da poesia. Sobre o seu papel nesse mundo tresloucado. Mas, todos parecem concordar, entretanto, que esse valor e esse papel da poesia não são instituídos por padrões fixos e são, portanto, imensuráveis e reduzidos a si próprios. A questão não se finda aí, no entanto. E por isso entro para o rol dos que voltam a ela só para, mais uma vez, dizer que esse fim em si da poesia está para além do seu próprio estatuto. E que esse fim desempenha um movimento para além das fronteiras do signo poético e sua dimensão é ampla o suficiente para entender a poesia com materialidade constituinte da ordem real do mundo empírico; muito embora o mundo empírico a rejeite, a poesia faz-se força corrente, escorrega sorrateira por entre suas fendas e aí se instala sendo capaz de reinventar a ordem das coisas. E isso não tem nada a ver com uma pedagogização gratuita do mundo, um amolecimento da dureza da racionalidade ou como quer ainda os mais puritanos, um florear do real. Sobre isso já tenho dito que estamos longe no território da poesia. Ela tornou-se materialidade inquieta e inquieta o suficiente para ser aquela que aponta com o mesmo dedo em riste do romance, por exemplo, o caos do mundo.

Sobre o caos do mundo a poesia ocupa a dimensão não de estatuinte de uma ordem, mas de sua problematização. Se antes o mundo parecia um sistema muito bem elaborado, com proa conduzida pela figura de um navegante superior que detinha as coordenadas e dizia – sem dar as caras – qual seu papel na cabine da condução; se antes o sistema bem elaborado se guiava por regras próprias às quais o homem, reles mortal, não tinha acesso; hoje o movimento é avesso disso tudo: olhamos para os mais de não-sei-quantos anos-luz desse mar de estrelas e percebemo-nos sem capitão; o sistema, até que possui regras próprias e está mais ou menos bem estruturado, mas noutra ponta, a certeza de não termos capitão e de sermos agora criador-e-criatura, deu ao mundo uma destituição de sua cartografia e ao homem a vontade real de ser imortal. A poesia entra aí como unidade maleável no processo de reconhecimento do mundo-em-si, do homem-pelo-homem, do homem-deus. Isso parece ser suficiente para ver na poesia como espaço de redenção do homem perante sua existência e, consequentemente, da vida perante a vida. Nesse processo, instaura-se ainda o caráter de resistência da poesia.

O sopro da nomeação – instituído na criação do mundo ao Adão – é um sopro poético. Reconhecer a natureza com tudo o que ela tem, fundamento da linguagem, instituição do mundo, por extensão fundamento da poesia. Se ela se desvinculou do movimento sagrado e desceu das torres de marfim, porque os deuses todos estão mortos, a poesia, logo, ocupa o extenso vazio por eles deixado e firma-se como sentido das coisas e do mundo. Não deixa de ser posta sob pelos-ares como representação vazia ou inutilidade verbal, isso pelo modo como o rumo da construção do sistema que rege a redoma social tem sido pensado, articulado e construído, ao longo de vários séculos de dominação e exploração. Contemporaneamente, a espetacularização, o consumismo, a massificação, a coisificação do homem, a nulidade da vida e o desenvolvimento de uma teia crescente que suga e deglute a todos e nos ameaça (e muito tem nos transformado) em escravos cativos, mentes obsedadas, esquemas a serviço de, eis que a poesia resiste. Resiste no ato de reincorporação do corpora semântico, de refacção dos esquemas verbivocovisuais, da reformulação de sua própria consciência de ser-poético e firma-se como contra-corrente para destituir a hostilidade, o absurdo, a falta de lucidez. Firma-se como um grito, um perfil esguio, esquivo, revolto, retorcido, alimentando-se não somente de si – sua substância vital – mas deglutindo, antropofagicamente, a indigência, o avesso, o retrocesso. Fecha-se para si, fala de si-para-si, mas expõe a nu os movimentos de obliteração que a reduziram em fantasmagoria. Mas sobrevive. E sobrevive.

Aqui se inscreve a poesia de Marize Castro. Não quero reduzi-la ao tom feminino a que a crítica comumente tem-na associado e o fundo sobre o qual a poeta tem se movido ostensivamente. Mas quero entender Marize Castro no epicentro de um movimento escritural que se firma como sujeito-ator no processo de reconstituição simbólica do mundo pela palavra – signo feminino, mas largamente cultivado por uma colônia patriarcal. A poeta de Marrons crepons marfins estabelece – ao modo do que fizeram outras poetas suas contemporâneas e ao modo como fazem também outras poetas posteriores a si – um novo movimento do signo poético, que primeiro busca no traço da diferença, mas não deixando de guiar-se por projetos mais solidificados, para uma refiguração do mundo. Um elo de resistência às paredes da ordem dominante, a fim de, como um caruncho que se alimenta dessa estrutura, promover uma destituição do dito pelo interdito.

O ilhamento da palavra, sua decomposição e recomposição em pequenos blocos, entre outras figurações estéticas constituem-se, ainda, em novidade pelo modo como o recurso, aperfeiçoado desde a lírica cabralina, dá enforme a ideia verbal sugerida pela poeta. A resistência da poesia encontra em Marize muitas faces. Muito embora estejamos diante de uma urdidura poética ainda em construção, o fabricar seu ora sugere a reformulação de condutas, ora sugere um mover-se de defesa e  destituição discursiva, ora é crítica sem trégua ao descompasso, à desordem do mundo-fêmea em constante reformação. Não há espaço para nostalgia, nem para a utopia, o fim-em-si do poema propõe um mundo outro, de fendas expostas, de novas relações, em que a poeta se apresenta numa pulsação corpórea de dimensões escusas, pondo à voz o que foi silenciado, cerceado, cerzido, obliterado por uma ordem unicista, unilateralista e inteiramente a serviço de uma margem tida como superior às outras. 

Pedro Fernandes de Oliveira Neto